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13/05/2009

Dicotomia

A Cabeça, embora digam que seus atributos de personalidade sejam masculinos, é uma mulher. Lógica, calculista, direta e objetiva... pronta pra ponderar racionalmente suas escolhas. Já o Coração, rapaz jovem, revela alma que flutua e a garganta em nó. Sensível às palavras e às imagens. Protetor e afobado... sempre passando os pés pelas mãos!

Num dia nublado, bom pra melancolias criativas, o Coração passava distraído pela calçada quando avistou através do vidro, sentada sozinha, a Cabeça, com uma das mãos no rosto e a outra socando, sem escândalo, mas com certa intensidade, uma cadernetinha que estava ao lado da xícara de café com o resto do negro líquido já frio. O Coração entrou de supetão no estabelecimento, sem nem ponderar sobre o tempo que não se falavam ou se ela preferiria ficar sozinha naquela hora, seja qual fosse o motivo...

- Oi, Cacá!
- Eita! Você por aqui?
- Passava pela calçada e vi que parecia aflita. Tudo bem?
[Cabeça titubeou: por que o Coração sempre aparecia para querer dar palpite nas suas decisões? Quase sempre ele estragava tudo!]
- Não sei, preciso pensar... [respondeu seca].
[Um breve silêncio]
- Qualquer coisa, estou na mesa ao lado.
[Disse resignado o Coração que se sentou a duas mesas dela, entretanto, conhecendo bem as artimanhas do tempo, seu cúmplice, resolveu esperar].

Relação difícil, mas fundamental!

Sempre que a Cabeça sentia dores, lembrar do Coração era quase instinto de sobrevivência, e de forma mágica, ele sempre estava lá... fazer suas contas e anotações não adiantava de nada. Exercitar o ouvir era algo que a tirava de dentro de si mesma e a fazia abrir os olhos para o conforto que o próximo pode trazer. Os caminhos que a Cabeça sabia traçar facilmente, sem equívocos, eram sempre retos, e quando ela passava por eles chegava exatamente onde queria, era ótima com gráficos, mas por muitas vezes se via com frio e saudade de abraço.

Já Coração era o oposto dela: quente e pipoqueante, se distraía soprando as mãos e queimando a língua com o café que bebia muito quente enquanto lia um folhetinho de Cordel. Sempre chorando ou sorrindo demais. Não sabia traçar caminhos porque o gerúndio também o distraía. E ele vivia se desviando por esquinas sem fim. O Coração mora numa casa de quina-de-labirinto. Aonde o caminho vai dar, não se sabe, mas o Coração sempre chega. Conversar com a Cabeça, sua companheira desde sempre, era algo que o aliviava os pesos, porque ela suavizava sua febre, e desembaçava suas lentes.

Seria uma relação linda, se eles não se evitassem tanto.

A Cabeça, arrependida pela grosseria, olhou pro Coração com ternura pretendendo sentar-se ao lado dele e não mais adiar a conversa, e ele que tinha o semblante de preocupação altruísta, não se importava com o tapa de luvas que recebera, justamente por desconhecer seus motivos... Quando notou que ela se aproximava desconfiada mas sincera, se levantou afastando a cadeira, como quem compreende a seta do carro que indica a intenção da direção, e a abraçou longa e confortavelmente. A Cabeça resolvera ouvir o Coração...
“o resto é mar... é tudo que eu não sei contar”...



Nota:

Tenho sentido umas fisgadas esquisitas no coração. [assim: sem poesia mesmo]
Há quase uma semana sinto uns pulos, uns chutes, como se meu coração estivesse grávido! Será?
É interessante que quando as pontadas, que não chegam a ser dor, aparecem, tenho vontade de fazer metáforas e criar analogias. Todos os “médicos-de-muitas-aspas” da família já deram palpites e indicaram remedinhos e chazinhos. Mas se não passar, amanhã procuro um de verdade.
Por via das dúvidas, do coração grávido nasceram algumas palavras. Se a dor passar, entenderei como dores de contração, o coração que quer realmente ser ouvido.

7 comentários:

patrícia disse...

seu texto fez carinho em mim. suas palavras abraçaram longamente o meu silêncio...

obrigada por esse texto, bianca. e, ahn... eu não posso não dizer que eu gosto mais do coração. hehe (:

:*

Fernanda. disse...

tenho vindo aqui e seu coração tem falado faz tempo, faz posts, e comentários em outros blogs, Bianca querida! Gostei do seu texto! abraço=)

Miguel Del Castillo disse...

ultimamente por aqui eles têm tido umas brigas sérias, rs.

queria ler pro meu filho isso quando ele fizesse 11 anos e os conflitos entre os dois começassem (:

O Viajante disse...

Concordo com Miguel, briga feia entre os dois aqui também....

Esse texto me tocou profundamente, tanto que os aquietou....

Obrigado por compartilhar esse texto tão magnífico!!!!

Liege Lopes disse...

Ah...
você me aliviou. Por algum motivo (que a Cabeça não sabe explicar) meu Coração sofria sozinho pensando que eu habitava esse ringue.

Vou guardar nos dois.

Unknown disse...

"... Que é do tipo Cara Valente
Mas veja só
A gente sabe...
... Esse humor
É coisa de um rapaz
Que sem ter proteção
Foi se esconder atrás
Da cara de vilão..."
No tempo certo existe essa conversa, o "cara valente" tem coração de manteiga.

Felipe Reina disse...

pela lógica probabilística, minha cabeça já avisou ao coração pra se acalmar antes de ler um texto seu. Nunca decepciona. Meu coração só descansa e curte.
Muito bom!