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09/06/2012

Sobre o Ver.

Sou defensora da autonomia e do desenvolvimento da capacidade de expressão própria. Como professora de Artes Visuais, meu objetivo não é somente possibilitar o reconhecimento de códigos gráficos e obras importantes, mais que isso, por militância, é a busca de uma identidade, e o empoderamento de instrumentos para a expressão do que se é genuíno a indivíduos, coletivos, povos.

 Acredito que a voz ativa seja um direito, e um símbolo da dignidade. [Como expressei no texto “sobre o ouvir”] Mas o texto que elogia a voz trata da importância da audição. Neste texto, sobre expressão visual, quero tratar da importância do saber ver.

É comum ouvir que o individualismo pós-moderno nos torna cada vez mais sozinhos em nossa caminhada. Eu discordo. É enorme a necessidade de adaptação e de culto ao “parecer”, se não fosse assim, não existiria o status quo, a vontade incontrolável de se trocar de carro ou de aparelho celular, a fórmula social de sucesso, a moda, os cabelos alisados, as fôrmas...

A individualidade neste sentido, nada mais é do que a forma de se obter recursos, ganhar vantagem, e passar por cima de interesses coletivos, para se mostrar aos outros o quão poderosos se é. Status. As mídias ditam o padrão estético nortista, europeu, dos grupos economicamente dominantes.

Neste ponto sou testemunha do poder que possuem, pois, muitas vezes vi meus alunos negros fazendo auto-retratos com a pele branca e os cabelos amarelos, mesmo segurando o espelho em suas mãos!

Já vi também, nos primeiros meses na Escola de Belas Artes, os olhos dos exímios desenhistas treinados pelas revistas de super-heróis norte-americanos, no primeiro dia de aula com um modelo vivo negro, pequeno, fora dos padrões com os quais estamos acostumados a ver representados, daqueles que exigiriam mais dos nossos olhos na produção do seu desenho, e os produtos finais depois de 30 minutos de observação e riscos no papel, serem bizarros super-heróis na posição que o modelo havia feito. Será possível que ninguém o enxergou? Ou os olhos não são suficientes para VER as coisas?

Eu sou muito distraída quando se tratam de lugares e referências geográficas. Meu mapa seria em branco, e os prédios surgiriam de um dia para o outro, depois que sou obrigada a repará-los. Faço o mesmo caminho em Macaé há 3 meses para chegar em certo ponto, e o prédio da UFRJ só surgiu depois que precisei dobrar a sua exata esquina.

Neste ponto preciso transcrever o que o Augusto Boal diz em seu último livro “A Estética do Oprimido” porque ele diz muito do que me move, enquanto profissional, e ser político:

“... O analfabetismo é usado pelas classes, clãs e castas dominantes como severa arma de isolamento, repressão, opressão e exploração. Mais lamentável é o fato de que também não saibam falar, ver, nem ouvir. Esta é igual, ou pior, forma de analfabetismo: a cega e muda surdez estética. Se aquela proíbe a leitura e a escritura, esta aliena o indivíduo da produção da sua arte e da sua cultura, e do exercício criativo de todas as formas de Pensamento Sensível. Reduz indivíduos, potencialmente criadores, à condição de espectadores...

...Temos que repudiar a ideia de que só com palavras se pensa, pois se pensamos também com sons e imagens, ainda que de forma subliminal, inconsciente, profunda! O pensamento sensível, que produz arte e cultura, é essencial para a libertação dos oprimidos, amplia e aprofunda sua capacidade de conhecer. Só com cidadãos que, por todos os meios simbólicos (palavras) e sensíveis (som e imagem), se tornam conscientes da realidade em que vivem e das formas possíveis de transformá-la, só assim surgirá, um dia, uma real democracia.

* Para que se compreenda com clareza que existem tantas estéticas quantos grupos sociais organizados, comparem estas duas imagens: Jesus com seus apóstolos vestidos com andrajos e com a alegria passional daqueles que sentem que dizem verdades; do outro lado, o Papa, envolto em ouro e ouropéis, no seu papamóvel blindado, cercado de guardas suíços, vestidos pela griffe Michelangelo, cercado pelos seus príncipes, ornados como ele. Jesus e o atual cristianismo têm pouca coisa em comum... Ou vocês acham que esses dois grupos estariam usando a mesma e única estética universal? Ou seriam seus caminhos tão exclusivos dos interesses e propósitos de cada grupo? Para que eu possa começar a acreditar em alguma coisa que ele diga, quero ver o papa quase nu, despojado de artifícios, pregando nas ruas e nos campos. Isso, sua estética não permite; a minha, exige!” [BOAL]

E como fechar um texto sobre a visão sem citar o Saramago em seu livro “Ensaio sobre a Cegueira”? Em algum sentido a visão norteia o coletivo e ajusta os interesses. A ausência dela no livro, revela a realidade. E a intrigante mulher do médico, única personagem na cidade que não perde a visão, do que se trata? Em certo ponto ela é advertida de que se revelar que consegue enxergar, poderia ser morta.

É o que a humanidade reserva aos que vêem. Os que entendem os mecanismos são perigosos. Vide a história de cada mártir. Seu maior instrumento não foram armas ou exércitos, foi a visão.

O perigo para as estruturas opressoras, dominantes, pecaminosas não é o fato dos cidadãos terem olhos. O perigo real é usá-los!




 PS. Quero lembrar com doçura algo que ouvi da minha amiga cega, Camila: Enquanto trabalhávamos na exposição sobre o Miles Davis no CCBB em 2011, em uma das baias, separadas por cores, tocava o disco do Miles com mais influência do Blues. A sala era toda azul. Entramos, ouvimos por um tempo, sem que ela soubesse, a pergunta que fiz à Camila foi
-“Pra você, que cor teria esta sala?” no que ela respondeu
“Esta sala tem cor de chuva; de avião quando está no alto do céu”.

 Ela leu a cor do som, e tudo ali era mesmo azul.
Os olhos precisam de todo o corpo para enxergar com ele.
Mais azul ainda foi o mar que me veio aos olhos!

2 comentários:

Marcelo Carahyba disse...

Como já disse no Livro das Faces, genial. Foi para o Textus Selectus: http://www.textus-selectus.co.nr/2012/06/sobre-o-ver.html

Bjo.

Thiago Paixão disse...

Quanta coisa legal. Penso que a primeira reflexão é que a visão como sentido está na mente. Os olhos captam, mas a mente vê. Conseguimos sonhar mesmo que não haja olhos. Outra reflexão é. Existem pessoas que não conseguem ver: são absolutamente marginalizados. Existem os que veem o que querem: vivem na fantasia. Existem os que veem o que todo mundo ver: são participantes. Mas existem os que veem o que outros não veem e fazem o que outros não fazem: são os visionários.